domingo, 12 de novembro de 2017

O Torturador.

O Torturador.
Parte I

Depois de tanto ter matado, eu não sinto mais a dor. O sorriso escapa quando vejo alguém implorando. Vejo poder, sei o que fiz e o que gosto de fazer, matar, tirar a vida, olhar o outro de joelhos e gargalhar quando ele me implora pela própria vida. Vivi em um orgulho tremendo, dinheiro, poder, mulheres. Vivi a minha vida à custa da morte do outro. Morte, morte, lindo nome para um filho.
Sinto a minha cabeça doendo. Pulsa!  Esse pulsar não para de doer, o sangue me cega à visão, não encontro mais o meu caminho, não tenho caminho, olho a escuridão, olho o vermelho do sangue que não para de jorrar, olho meus pés e vejo nada além de lama. Uma lama espeça, grudento, vejo vultos, escuto gritos. Olho para o céu, o céu não esta mais lá, é escuro, não tem lua, nem sol, não tem 24 horas.
Procuro a minha pistola 9mm, não esta na minha cintura, tento correr não consigo, os pés estão presos na lama, vejo pessoas se aproximando, elas gritam o meu nome, parece que me conhece e me odeiam. Véio, tô na merda.  Fui alcançado e brutalmente espancado, fui jogado de cara na lama, fui sufocado, açoitado, gritava por perdão, nenhuma alma me escutava, as pessoas ali queriam me ver sofrer. Perdi o meu poder, o meu orgulho, implorei, chorei, ajoelhei, mas, aqueles caras não estavam a fim de me ouvir, se sentiam orgulhosos por me ter em suas mãos, gritavam para o espaço que tinham se vingando.
Colocaram uma corda em meu pescoço, e me arrastaram para todos os lados, eu engoli muita lama, até que pararam, não conseguia ver muito bem, a dor era muita, estava todo cagado, mijado e não tinha mais lágrimas para chorar, parecia uma criança sem a sua mamadeira. Sempre fui mimado, hoje estou no escuro sozinho, não tem uma pessoa que me venha mimar ou puxar o meu saco.
Os gritos param! O silêncio! Esfreguei os meus olhos! Consegui ver! Era uma luz fosca, era uma muralha? Uma cidade? Como poderia ter uma aqui? Não conseguia entender nada, nada. Eu estava saindo de casa, estava no meu carro e do nada eu estava ali, no escuro me fodendo todo. Que porra é essa? O portão abriu! Fez um barulho ensurdecedor, saíram lá de dentro um povo bem estranho, não eram humanos, eram figuras bizarras, carrancudas, bravas e percebi que maldosas, fui entregue a eles, e as pessoas que me carregavam falaram. Foi feito! A morte cobra a sua vida em vida. Não tinha a mínima noção do que eles falaram.
As duas figuras não humanas me pegaram pelos braços e levaram para dentro da cidade, por onde eu fui passando tinha gemido, tinha dor, era desesperante, o que ia acontecer? Véio eu literalmente estava na merda. Deixaram o meu corpo sem força em um pátio, todo mundo passava e mijavam em mim, me chutava, eu não tinha mais força, só sentia dor e mais dor, os meus gemidos ecoavam entre as muralhas, parecias dias que estava jogado ali sem água, pão, sem nada. Foi quando as duas criaturas voltaram, me pegaram e levaram, achei que o suplício tinha terminado, mas não. Deixaram o meu corpo quebrado em um quarto, e um senhor se aproximou de mim, disse ele, não me esqueço. Tu gostava de torturar, hoje tu vai realmente aprender a torturar. Colocou a mão em minha cabeça e tudo veio com clareza. Eu tinha sido executado. Eu morri na frente da minha mulher e filha, eu o matador, eu o torturador, a autoridade da Obam tinha sido executado, eu não valia bosta nenhuma, tinha sido justiçado como dizem os que eu torturava.
Agora tudo faz sentido, os rostos daqueles que me trouxeram aqui me fez sentido, eu conhecia eles, eu torturei e matei. Comecei a perceber o que eu era e como trazia dor, como gostava de poder fazer aquilo, ter poder sobre a vida e a morte, poder sobre a dor, poder sobre o sexo, eu decidia se queria ou não. Quem morria ou não.
Agora sou eu sentado em uma cadeira, mas ela não é do dragão, ela tem pontas, e os meus algozes são todos estranhos, são figuras esquisitas, parecem bichos. Toda hora eles me falam que eu vou ser um bom torturador, por isso que me torturam, para eu aprender.
Francisco Maia. 

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Haikai.

Haikai.
Eu êxito, finjo que não. Sou dominado, só que não.
Morro todo dia, e todo dia nasço.
Sou livre na medida em que me deixam,
Essa coleira não é minha! É sua! Pense!

Francisco Maia. 

III Séculos de Vida.


III Séculos de Vida.

Vim de África, Ogum, Oya, morri no novo mundo,
Mudei de alma, e orei para São Jorge e Santa Bárbara,
Deixei o meu mundo, dancei no terreiro, chorei na senzala.
E doei sangue no pelourinho, soei chibatadas.

Corri um pedacinho de terra, parei em Palmares,
Lá fomos todos iguais, morri por Zumbi e Dandara. Morri pela liberdade!
Caminhei em alma crua nos sertões, pés machucados.
Extraí ouro nas feridas abertas no veio da terra, feri minhas mãos.
Lombo, ardeu, ardeu, fui para Piratininga.

Colhi café, raspei terra, andei, andei, era tudo do sinhozinho,
Apanhei de vara de marmelo, morri novamente, sofri, doeu, sou negro.

Meus olhos abriram, renasci. O soluço, o choro, a morte não tinha me levado,
A vida veio, eu nego com a liberdade Áurea, dois artigos e nenhuma justiça social.
Subi o morro, correram com a gente dos cortiços, não me deram emprego, não sei ler.

300 anos de escravidão, muitas mortes e muitos nascimentos, muita dor.
130 anos do fim da escravidão, não sinto a liberdade, vivo sem muitos direitos,
Os quais são privados, ainda são reclamados, ainda luto por liberdade, justiça e igualdade.

O meu grito não é mais um gemido amordaçado, o meu grito é a revolta.
O meu medo não é da morte, o meu medo é da injustiça.
Não nasci no novo mundo, eu renasci no Brasil.

Eu cresci reencarnando, hoje sou forte, sou negro, sou brasileiro.
Não vim porque quis, mas estou aqui para ficar.
Me respeita, pois aqui também é meu lar.


Francisco Maia.


quarta-feira, 19 de julho de 2017

Despertado.

Despertado.


O poder é do povo, só que o povo não sabe disso!
Pena que o povo ficou feliz e não triste em ser divido!
O povo tem parcelas para pagar, tem carro novo, casa!
Pena que o povo não se acha povo.

Sinto falta do povo, dele decidir sem receber!
Sei que o povo está alinhado, não é sua vontade.
Sinto que o povo, cresceu, achou e perdeu.
Sei que meu povo descaminhou-se por sentir que não é do povo.

Meu povo está ébrio! Encantado com a lua cheia.
 Adormecido com o remédio instantâneo da solução,
Soluçando com o pão seco e o vinho barato da cesta de natal.

Ah! Quando o meu povo perceber que não é médio,
Oh! Quando o meu povo perceber que é grande.
Olha você! Vamos te derrubar, não vai demorar.

Francisco Maia.



quarta-feira, 14 de junho de 2017

Poética.

Poética.

Pensei que a poesia tinha morrido.
Achei que não tinha mais como!
Poemas viraram dialética e dialética poesia.
Morri, e fui para outro lado, cordel cantei.

Sambei na minha lápide e o espirito não deixava o corpo,
Alma cinza por desencanar em maniqueísmo.
Vermelho ou azul, a morte não tem cor!
Interesses antagônicos que separa o morto pobre.

Apodreceu o sangue vermelho e enrugou a veia azul!
O verme pinicou o osso amarelado que logo é pó,
Tremulou a chama da vela, deixando o fumo na gaveta branca.

A lua alva iluminava a minha alma perdida,
Balbucie um samba, entoei uma poesia. Não morreu comigo!
Ela apenas nasceu no meu simples existencialismo.

Francisco Maia.







domingo, 14 de maio de 2017

Transformação

Transformação

Os meus moinhos voaram,
Partiram desse solo para Holanda.
Foram de açúcar, negra sua cor,
Saíram de África, Oyá, rápido, vento, pensamento.

Os meus moinhos era de Pança,
Quixote rendido descansa
Com o doce que saboreou de América,
Criolo produziu sua musica açucarada.

Era assim um pão d’Ouro
Brotado de um sangue rubro,
O azul era a regra mestiça.

Mestiço eram os excluídos de Europa,
Mestiços são os novos moradores de América,
Da América não ficou nada para Ubiratã.

Francisco Maia.


sexta-feira, 21 de abril de 2017

Só o que te sobrou.

Só o que te sobrou.

Quando se nasce pobre, te sobra ser forte.
Quando se nasce negro, te sobrou ser forte.
Quando não te sobra o pão, engana-se a fome.
Quando não te sobra a água, engole-se a saliva.

Quando não se pode ir ao centro, te sobra a periferia.
Quando não se pode ir a praia, te sobra o morro.
Quando se vive esquecido, te sobra a sombra.
Quando se vive acuado, te sobra a raiva.

Do Norte ao Sul falta-te o sopro de vida.
Chora a criança faminta, das tuas lágrimas
 A única gota de água na terra.

Engana-se com a política;
Ainda desce o morro de chinelo para o asfalto,
Sem pisar descalço na areia.

Sorri para o clarão, no escuro,
Do estouro, sobra-te a reza,
A flor e a vela;
Cova e um número de indigente.

Francisco Maia.

O Mendigo de Copacabana.

O Mendigo de Copacabana.

            Doeu, doeu um pouco, doeu mais ver o meu corpo esmagado no asfalto. Foi um descuido e o caminhão de lixo me pegou, que ironia,  até na morte estou do lado do que a sociedade sempre me chamou, desencarnei, olhei a matéria pela última vez, um monte de carne moída no asfalto negro, calor de 40° do Rio de Janeiro, fritou minha carne.
            Vaguei por horas nas ruas que costumava ficar, olhei os companheiros de batalha, logo sumi, saí desse mundo, não sei explicar para onde fui. Olhei uma luz, e vi verde, água, cachoeiras, pedras e um muro alto sem portas, não sabia onde estava e muito menos por qual motivo estava lá. Tive uma vida, tida, por muitos como perdido, miserável, um bicho, sujeira para muitos que passaram por perto de mim, um cara fedido, o verdadeiro fracassado na existência social contemporânea. Mas, no fim, eu estou na muralha, fui acolhido, levado e recebi todos os cuidados. Nunca na minha breve existência fui tão bem acolhido, tive cama, comida, roupa limpa e o mais importante, palavras de carinho. Entendi que tinha morrido, e que as minhas mazelas tinham-se acabado, o mais difícil era me curar dos excessos da carne que tive que cometer para suportar a rotina de rua, o frio, o calor, a fome e a dor do olhar de quem passava e me humilhava com palavras e piedades compradas com uma moeda de 10 centavos.
            Não sou nenhum santo, mas também nenhum pecador, tive que viver a forma que escolhi, motivos, vários, desculpa é que sempre me deixaram lá, não me arrependo, faria tudo de novo. Hoje me encontro em um lugar que não recebo olhar de nojo, aliás, as pessoas que me olhavam desse jeito eu não vejo aqui, perguntei por curiosidade, mas me informaram que eles não passaram por onde deveria, não perguntei mais, fiquei calado. Vai que eles me coloquem para fora né?
Minha existência mundana começa em uma família tradicional, pai, mãe e irmãos, fui o primeiro a nascer, encarnar, vai lá. Na primeira infância, sei lá se posso usar o que aprendi? Lembro-me da rua de casa, da minha casa, do meu quarto, das palmeiras da praia na frente da rua, cresci, estudei nos melhores colégios da região, região essa que não cabe mencionar. Filho de militar sempre tive que estar postado, firme, duro. Via a fraqueza dos outros amigos como fracasso. Fui forçado a olhar os mendigos como pecaminosos, perdidos, preguiçosos que eu como filho de família bem sucedida tinha que trabalhar para sustentar, isso não era justo! O governo tinha que dar um jeito, eu ouvia que pobre não deveria ter filhos, que não deveria nascer que deveria ser extirpado pelo governo, pois trazia sujeira e doenças.
Cresci com esses conceitos remoendo em minha cabeça, não entendia e na verdade nunca entendi qual seria a finalidade de uns ter mais e outros menos, qual a finalidade de uns transgredir a lei e outros sem descumpri-la seria espancado ou preso ou na menor da hipótese enxotado do local que estava. Bem, fui para faculdade, meu pai como militar me queria em um curso como medicina ou direito, podia até ser engenharia. Entrei na Universidade de São Paulo no curso de Engenharia Mecânica, não era exatamente o que ele queria, mas aceitou, ao menos eu não entrei nos cursos da FFLCH. Cursei um semestre de engenharia, não me adaptei, e tranquei a matricula, mas fiquei com medo do meu pai. Fiquei morando em São Paulo em um apartamento que ele pagava, arrumei um emprego no período que ele achava que estava na faculdade. No final do ano ele veio na faculdade e descobriu que eu não cursava, tinha trancado. Foi aí que ele veio no meu apartamento junto com a minha mãe e me humilhou, falou que eu era um fraco, que eu nunca ia ser ninguém na vida, que eu estava desperdiçando a minha juventude, minha mãe só chorava, não falava nada, me olhava com olhos de desgosto. Ele não ia mais pagar o meu aluguel e que eu me virasse, ele antes de sair cuspiu no chão e olhando para frente me falou que não era mais seu filho. Foi quando entendi que na realidade que estava sozinho nesse mundo.  Chorei, me culpei, andei pela rua São João sem saber onde parar, embriaguei chorei mais um pouco. Quando amanheceu, eu estava dormindo em um canto,  tinha mais pessoas lá, todos cumplices de um destino igual.

Voltei para o apartamento para pegar uma muda de roupa e o livro de Baudelaire e Florbela, larguei tudo, tudo mesmo, não voltaria mais naquele lugar,  meus pais estiveram lá, recolheram tudo e levaram para a baixada.  Eu tinha pouco dinheiro, então comprei uma passagem para o Rio de Janeiro, cheguei lá e não arrumei emprego,  comecei a andar na orla,  comecei a perceber que os mendigos eram mais generosos que as pessoas que passavam em minha frente. Logo eu já estava enturmado com eles, comecei a dormir nas marquises que eles descansavam, me aceitaram sem pedir currículo, sem querer saber o meu sobrenome, só me aceitaram. Comecei aí a colaborar, comecei a partir daí a perceber a miséria humana, olhar o que me era proibido, tido como lixo. Eu fazia parte desse lixo,  gostei, fui livre, anarquista, sem poder para me prender. Comecei a ajudar os outros, dividir, respeitar, olhar, sentir e amar.

Os olhos preconceituosos não me afetavam, esses mesmo olhos que fui ensinado a ter toda a minha vida, os olhos que me recusei em ter e que me baniram da minha família. Encontrei outra família, uma que me acolheu sem querer saber o que eu quero ser, pois para eles só existe uma forma de ser, é viver para ti e para os seus, caridade, quanto mais pobre, mais caridosas são as pessoas, passei os meus dias de vida em Copacabana, ajudando e sendo ajudado pelos meus camaradas de luta. Vi sim o meu corpo despedaçado, mas também não vi o meu pai que falecera anos antes que o meu desencarne.

 

Francisco Maia.




sábado, 21 de janeiro de 2017

A Menina Suicida

Crônicas de um Morto

A Menina Suicida

Juro que foi por amor, por amor, quem não faz tudo que se pode? Juro. Já que nos melhores poemas as pessoas jogam-se as traças da vida por amor.
Acordei no escuro, os meus olhos só viam vultos, gemidos estranhos, vozes estranhas, tudo era muito tétrico, lama suja, de uma sujeira que fez lembrar-me do rio Pinheiros, cheiro de podridão, morte para todos os lados, não tinha uma touceira de mato, nem um pássaro a piá. Andei por horas, nada existia nesse lugar, só gemidos e mais lamentos. Pensei que eram os meus demônios, mas eles não são só os demônios e me tornei um deles, são almas desencarnadas por amor, por medo ou por coragem, coragem de tirar a sua própria vida achando que a morte seria melhor que os dias de angustia vividos por cada andante. Sentei a bunda em uma pedra suja de lama, aliás, eu estava toda suja de lama, não me reconhecia, tinha fome, sede, a sujeira era tanta que eu me sentia parte dela, como se eu sujasse mais aquele lugar com a minha presença. Comecei a entender os gritos ecoantes de desespero quando percebi que eu tinha realmente obtido sucesso na minha terceira tentativa, e comecei mesmo que inconsciente a lamuriar, como todos que ali estavam, lembrei-me da hora, do fato e do motivo, as lágrimas tentaram sair, mas os meus olhos estavam secos.
Vieram na minha memória quem eu fui entes de estar ali. Nas minhas lembranças eu sempre fui a queridinha dos meus pais, éramos em três irmãos, acredito hoje que tudo tem o três como número par, são dois três na minha existência. A minha irmã mais velha e o meu irmão caçula sempre tiveram a existência que os meus pais queriam, eram estudiosos, gostavam das mesmas coisas, a minha irmã, magra e alta brincava de casinha, tinha todos os utensílios, vassoura, panela, fogão e a casinha de boneca, que naquela época era o melhor presente para uma menina. O meu irmão ganhou uma camiseta do time do meu pai, ele exibia essa camisa da Portuguesa em todos os lugares que ele ia, ganhou bola de futebol, carrinhos de madeira. Eu a filha do meio, cuidava do meu irmão, eu filha do meio servia de brinquedo para minha irmã mais velha.
Quando comecei a jogar futebol, a empinar pipas, jogar gude, a criar estradas para os carrinhos do meu irmão, brigar por seus bonecos de guerra, logo fui vista diferente, os meus pais logo me colocaram na escola de bale, eles não perceberam que ali estava o meu primeiro grande amor. Eu não dançava, eu só olhava a menina mágica dançando, ela era magra, linda, de olhos negros, corpo negro. Eu, filha de classe média, branca, com os olhos esverdeados e cabelos negros lisos não tinha o direito, nem em pensamento me apaixonar por alguém negro ou mesmo alguém do mesmo sexo, isso seria um ultraje para minha família, religiosa e tradicional.
Comecei a gostar do balé, a minha mãe achou o máximo e, o meu pai pensou que tinha resolvido o problema que só existia na cabeça dele, um problema que não existe quando dois seres se amam. A minha primeira decepção foi saber que a família da magia também repudiava o amor dos iguais. Então com os meus 12 anos de idade eu aprendi a decepção por ser diferente. Larguei o Balé, e fui brigar com os meninos no futebol. O meu pai ficou puto da vida e culpava a minha mãe, dizia que isso era culpa dela. Eu não esquentava a cabeça, já tinha os meus 16 anos, a minha irmã mais velha tentava me vestir do mesmo jeito que ela, o meu irmão achava o máximo eu ir jogar com ele, na real, eu era melhor que muitos dos meninos que estavam ali, e quando tinha briga eu não deixava nada a dever para nenhum zagueiro bigorna, foram dias felizes, mas em casa nem tanto. O meu pai brigava todo dia com a minha mãe por me deixar sair para ir jogar com o meu irmão, na verdade ela não sabia, eu ia escondida.

Foi então que o meu pai me colocou em um cursinho de Inglês de manhã e de tarde um cursinho para o vestibular, ele tinha um sonho que um de seus filhos entrasse na Faculdade São Francisco e cursasse direito como ele, eu então na minha ingenuidade, achando que seria aceita por ele se entrasse e cursasse direito. A minha irmã mais velha se casou com um estagiário promissor do meu pai, mas meu irmão queria fazer filosofia na Maria Antônia. Quando meu pai descobriu o que meu irmão queria surtou. Não era para eu entrar na São Francisco e sim meu irmão. Passei no vestibular e comecei o curso, sai de casa, fui morar em uma república, foi uma briga em casa, meu pai não se pronunciou, pois segundo as palavras dele – Mulher Macho não é minha filha, não criei filha pra ser isso.

Eu cheguei no apartamento na rua São João e chorei muito, por uma semana essa rejeição me machucava, ligava para minha mãe do orelhão, a minha irmã mais velha não queria mais saber nem se eu existia,  meu irmão ficou com todo o fardo, ele também saiu de casa e foi morar no Butantã em uma república.

Começou as aulas, e umas das meninas que veio morar na república era do interior, de Barueri, uma garota com o cabelo de cachos rosto de ébano, moura, o qual foi a minha segunda paixão e perdição, amei essa criatura mágica, e foi tão intenso e correspondido que fiquei com ela até o terceiro ano do curso de direito, não tinha mais contato com minha família, só falava com o meu irmão de vez em quando, ele tinha largado o curso de filosofia e entrado em administração segundo a orientação do meu pai, era os anos de chumbo, e estudante de filosofia era perseguido, o meu pai mesmo tirou ele dos porões.

Eu seguia firme, de dia estudava e de noite amava. Um amor que não senti na minha própria casa. A dor da minha vida, não foi ser enxotada de casa, ainda que não explícito, mas quando a magia de ébano foi viajar para sua cidade no interior e o ônibus bateu de frente com um caminhão, e eu fui ceifada da única alma que me amara, perdi o meu chão, meu amor, meu motivo de viver. Eu vivia para ela, morreria por ela, chegava em casa e a primeira coisa que ela me perguntava era como foi o meu dia, curava as minhas angustias, sentia a minha dor, revoltava com as minhas revoltas, ela era o meu ser e a vontade de existir. Quando fiquei sabendo que ela morreu no acidente, desliguei o telefone e corri para a janela do apartamento e gritei, gritei para a minha alma me levasse junto, seja para onde for.

Fui no velório e chorei, fui ao enterro e chorei, voltei para o apartamento vazio, chorei, pensei que se o mundo não me dava a felicidade ele não deveria existir pra mim.

Peguei os remédios que tínhamos e engoli todos com cachaça, na tentativa de encontrar a morte, essa paixão que beijou minha linda amada. Fui socorrida por uma amiga que tinha a chave do apartamento, ela entrou para ver como eu estava, estava em migalhas, chamou o socorro e fui medicada, apareceu no hospital os meus pais, eles se preocuparam comigo, ao menos uma vez, acho eu, na vida. A minha mãe me levou para ficar na casa dela, o meu pai foi ríspido, mas aceitou a decisão dela, me trataram como uma doente, uma histérica. Eu saí de casa quando ninguém estava vendo e tentei me enforcar na goiabeira do quintal, mas o meu irmão me encontrou e não deixou, o trauma foi grande e mais uma vez fui levada ao hospital, fiquei lá por três dias. Quando foi me concedido alta os meus pais não puderam ir lá me buscar no horário certo. Então sai e rumei para o apartamento, onde fomos felizes, a chave reserva ainda estava embaixo do capacho, entrei, olhei, tinha as roupas dela no guarda roupas, peguei, cheirei, ainda tinha o cheiro dela. Fui para a geladeira, ainda tinha o vinho aberto, o vinho que tomei com ela na noite antes dela viajar. Tirei a rolha, tomei no gargalho o resto, fui em direção da sacada, fiquei de costa e soltei o meu corpo ao espaço, deixei a gravidade fazer o resto, três segundos até o chão.  

Só consegui ver o meu corpo estourado, depois apaguei. Hoje me encontro aqui, não vi mais o meu amor, sempre achei que gostar do mesmo sexo era pecado, mas creio eu que pecado é ser egoísta o suficiente para não perceber que o amor da sua vida partiu e tentar de qualquer forma encontra-lo, o suicídio foi meu erro.

Por esse erro eu padeço hoje sozinha nesse vale dos suicidas. Consigo agora entender as suas lamúrias, os seus gemidos, as dores que tocam as suas almas, são dores, que sem perceber também estou soltando os meus gritos, minhas lamurias, o meu arrependimento. Foi por amor, e por amor eu deveria ter seguido em vida para lutar pelo amor de dois seres humano isso não é pecado, fugir é pecado, e eu fugi...

 

 

Francisco Maia.



quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Crônicas de um Morto.

Crônicas de um Morto.

Estou nauseado, já faz dias que sinto esse cheiro de carniça, de carne podre, tudo é escuro, os meus olhos só podem ver um tampão, sinto dores e percebo buracos que se mexem entre o meu corpo, dói muito. A carcaça que carreguei em vida, virou um banquete... Tenho vermes entre os meus dedos, tenho falto de vida nos meus pulmões, sei que esse odor vem do meu corpo já podre. Tento sair, correr, fugir, mas estou preso no canto de terra cavada, o que me restou de vida, um terno mofado e flores. O cheiro de podridão é tão grande que a minha alma chora com o ardido nos olhos, o vento que não sopra... O rosto que não tem mais o toque da brisa, o calor que me consome. A pedra que foi existir, uma breve e lamentável vida, durou o suficiente. A morte, sua longa existente me condena ao exilio, exilio de chão, chão de morro, de morte morrida pela vida levada ao extremo.
Começou em uma tarde de novembro, o trabalho tinha terminado eu estava indo para casa, louco para tomar um banho e dormir, do nada veio um velho, um andarilho e no sinal de trânsito me perguntou.  Eu estava com a janela do carro fechada. Olhei do lado e logo o vi, abri a janela, e indaguei sobre o que ele queria, ele logo me respondeu. Nada meu amigo, só te avisando que logo tu estarás entre os mortos.  Achei bem louco o senhor que era mais louco que eu, ri por um instante e continuei a minha trilha.
Cheguei em casa e foi tomar um banho, logo uma dor me contou os passos até a sala, no som estava tocando um Tim Maia, cambaleando ainda cai no sofá, achei cansaço, mas a mórbida morte me esperava.  Acordei no murmúrio, choro e piadas, contos de outrora e exaltação, de primeiro eu achei que era uma embriaguez, uma festa surpresa, onde tinha o choro de alegria e a alegria dos meus feitos, percebi então, que os meus parentes e amigos mais próximos não estavam felizes, estavam emburrados, com uma cara qual tal um trapo.  Tentei ser o mais lúcido o possível, examinei todo o contexto que me cercava.
Percebi que os meus olhos fitavam os meus próprios olhos, e tudo cheirava a flores, consegui olhar em volta de onde eu estava deitado, e logo vi que não era o meu quarto, ou muito menos a sala da minha casa, logo percebi que tinha algo de estranho, tentei me levantar, o corpo tinha um peso estrondoso, pensei: Jesus, que merda eu estou tomando! Não me lembro de tomado cerveja, ou algo alcoólico. Então o quê poderia ter me derrubado desse jeito? Veio a minha mente o senhorzinho do semáforo.
Que porra, morri! Caralho! Como assim? Eu morri e acordei na festa que eu queria esta vivo. Todos os meus amigos e familiares lá. Logo reparei na tristeza, na lamuria e choro, e senti pela a primeira vez na vida que estava morto. E comecei a observar todos a minha volta, era alma? Não sei, pois o corpo estava inerte no caixão, pior, ele era bonito, pena que a terra ia comer ele junto com a minha carne.
Quando percebi já estava sendo sepultado, a tampa do caixão caiu suavemente sobre a minha face, e eu não conseguia mais ver ninguém, só conseguia sentir os passos dos que me carregavam para a sepultura, nesse momento tomou de minha alma uma fúria, de tal tamanho que eu não conseguia sair daquele maldito caixão, d’quela porra que me colocaram.
Deitado, de terno e com aquelas flores não foi uma coisa pensada por mim, foi um improviso de alguém, só pode. Pensei: um corpo morto cheio de flores, essa merda não vai dar certo, vai feder pra caramba. Vai que eu não fique lá? Vai que? Me fudi, tive que ficar até os vermes terminarem de correr os meus ossos.
Desceu à corda, o povo começou a jogar areia no caixão, escutei o barulho, tentei gritar, mas foi em vão. Credo nego, bah. Defecaram pra mim piá. Fazer o que, morri e ninguém sabe que tenho consciência no corpo inchado. Isso não foi o pior, o pior foi os dias que passei trancado no caixão sem poder sair... Mas isso é só ler o começo dessa crônica....
Francisco Maia.