Crônicas
de um Morto
A
Menina Suicida
Juro
que foi por amor, por amor, quem não faz tudo que se pode? Juro. Já que nos
melhores poemas as pessoas jogam-se as traças da vida por amor.
Acordei
no escuro, os meus olhos só viam vultos, gemidos estranhos, vozes estranhas,
tudo era muito tétrico, lama suja, de uma sujeira que fez lembrar-me do rio
Pinheiros, cheiro de podridão, morte para todos os lados, não tinha uma
touceira de mato, nem um pássaro a piá. Andei por horas, nada existia nesse
lugar, só gemidos e mais lamentos. Pensei que eram os meus demônios, mas eles
não são só os demônios e me tornei um deles, são almas desencarnadas por amor,
por medo ou por coragem, coragem de tirar a sua própria vida achando que a
morte seria melhor que os dias de angustia vividos por cada andante. Sentei a
bunda em uma pedra suja de lama, aliás, eu estava toda suja de lama, não me
reconhecia, tinha fome, sede, a sujeira era tanta que eu me sentia parte dela,
como se eu sujasse mais aquele lugar com a minha presença. Comecei a entender
os gritos ecoantes de desespero quando percebi que eu tinha realmente obtido
sucesso na minha terceira tentativa, e comecei mesmo que inconsciente a
lamuriar, como todos que ali estavam, lembrei-me da hora, do fato e do motivo,
as lágrimas tentaram sair, mas os meus olhos estavam secos.
Vieram
na minha memória quem eu fui entes de estar ali. Nas minhas lembranças eu
sempre fui a queridinha dos meus pais, éramos em três irmãos, acredito hoje que
tudo tem o três como número par, são dois três na minha existência. A minha irmã
mais velha e o meu irmão caçula sempre tiveram a existência que os meus pais
queriam, eram estudiosos, gostavam das mesmas coisas, a minha irmã, magra e
alta brincava de casinha, tinha todos os utensílios, vassoura, panela, fogão e
a casinha de boneca, que naquela época era o melhor presente para uma menina. O
meu irmão ganhou uma camiseta do time do meu pai, ele exibia essa camisa da
Portuguesa em todos os lugares que ele ia, ganhou bola de futebol, carrinhos de
madeira. Eu a filha do meio, cuidava do meu irmão, eu filha do meio servia de
brinquedo para minha irmã mais velha.
Quando
comecei a jogar futebol, a empinar pipas, jogar gude, a criar estradas para os
carrinhos do meu irmão, brigar por seus bonecos de guerra, logo fui vista
diferente, os meus pais logo me colocaram na escola de bale, eles não
perceberam que ali estava o meu primeiro grande amor. Eu não dançava, eu só
olhava a menina mágica dançando, ela era magra, linda, de olhos negros, corpo negro.
Eu, filha de classe média, branca, com os olhos esverdeados e cabelos negros
lisos não tinha o direito, nem em pensamento me apaixonar por alguém negro ou
mesmo alguém do mesmo sexo, isso seria um ultraje para minha família, religiosa
e tradicional.
Comecei
a gostar do balé, a minha mãe achou o máximo e, o meu pai pensou que tinha
resolvido o problema que só existia na cabeça dele, um problema que não existe
quando dois seres se amam. A minha primeira decepção foi saber que a família da
magia também repudiava o amor dos iguais. Então com os meus 12 anos de idade eu
aprendi a decepção por ser diferente. Larguei o Balé, e fui brigar com os
meninos no futebol. O meu pai ficou puto da vida e culpava a minha mãe, dizia
que isso era culpa dela. Eu não esquentava a cabeça, já tinha os meus 16 anos,
a minha irmã mais velha tentava me vestir do mesmo jeito que ela, o meu irmão
achava o máximo eu ir jogar com ele, na real, eu era melhor que muitos dos
meninos que estavam ali, e quando tinha briga eu não deixava nada a dever para nenhum
zagueiro bigorna, foram dias felizes, mas em casa nem tanto. O meu pai brigava
todo dia com a minha mãe por me deixar sair para ir jogar com o meu irmão, na
verdade ela não sabia, eu ia escondida.