sábado, 21 de janeiro de 2017

A Menina Suicida

Crônicas de um Morto

A Menina Suicida

Juro que foi por amor, por amor, quem não faz tudo que se pode? Juro. Já que nos melhores poemas as pessoas jogam-se as traças da vida por amor.
Acordei no escuro, os meus olhos só viam vultos, gemidos estranhos, vozes estranhas, tudo era muito tétrico, lama suja, de uma sujeira que fez lembrar-me do rio Pinheiros, cheiro de podridão, morte para todos os lados, não tinha uma touceira de mato, nem um pássaro a piá. Andei por horas, nada existia nesse lugar, só gemidos e mais lamentos. Pensei que eram os meus demônios, mas eles não são só os demônios e me tornei um deles, são almas desencarnadas por amor, por medo ou por coragem, coragem de tirar a sua própria vida achando que a morte seria melhor que os dias de angustia vividos por cada andante. Sentei a bunda em uma pedra suja de lama, aliás, eu estava toda suja de lama, não me reconhecia, tinha fome, sede, a sujeira era tanta que eu me sentia parte dela, como se eu sujasse mais aquele lugar com a minha presença. Comecei a entender os gritos ecoantes de desespero quando percebi que eu tinha realmente obtido sucesso na minha terceira tentativa, e comecei mesmo que inconsciente a lamuriar, como todos que ali estavam, lembrei-me da hora, do fato e do motivo, as lágrimas tentaram sair, mas os meus olhos estavam secos.
Vieram na minha memória quem eu fui entes de estar ali. Nas minhas lembranças eu sempre fui a queridinha dos meus pais, éramos em três irmãos, acredito hoje que tudo tem o três como número par, são dois três na minha existência. A minha irmã mais velha e o meu irmão caçula sempre tiveram a existência que os meus pais queriam, eram estudiosos, gostavam das mesmas coisas, a minha irmã, magra e alta brincava de casinha, tinha todos os utensílios, vassoura, panela, fogão e a casinha de boneca, que naquela época era o melhor presente para uma menina. O meu irmão ganhou uma camiseta do time do meu pai, ele exibia essa camisa da Portuguesa em todos os lugares que ele ia, ganhou bola de futebol, carrinhos de madeira. Eu a filha do meio, cuidava do meu irmão, eu filha do meio servia de brinquedo para minha irmã mais velha.
Quando comecei a jogar futebol, a empinar pipas, jogar gude, a criar estradas para os carrinhos do meu irmão, brigar por seus bonecos de guerra, logo fui vista diferente, os meus pais logo me colocaram na escola de bale, eles não perceberam que ali estava o meu primeiro grande amor. Eu não dançava, eu só olhava a menina mágica dançando, ela era magra, linda, de olhos negros, corpo negro. Eu, filha de classe média, branca, com os olhos esverdeados e cabelos negros lisos não tinha o direito, nem em pensamento me apaixonar por alguém negro ou mesmo alguém do mesmo sexo, isso seria um ultraje para minha família, religiosa e tradicional.
Comecei a gostar do balé, a minha mãe achou o máximo e, o meu pai pensou que tinha resolvido o problema que só existia na cabeça dele, um problema que não existe quando dois seres se amam. A minha primeira decepção foi saber que a família da magia também repudiava o amor dos iguais. Então com os meus 12 anos de idade eu aprendi a decepção por ser diferente. Larguei o Balé, e fui brigar com os meninos no futebol. O meu pai ficou puto da vida e culpava a minha mãe, dizia que isso era culpa dela. Eu não esquentava a cabeça, já tinha os meus 16 anos, a minha irmã mais velha tentava me vestir do mesmo jeito que ela, o meu irmão achava o máximo eu ir jogar com ele, na real, eu era melhor que muitos dos meninos que estavam ali, e quando tinha briga eu não deixava nada a dever para nenhum zagueiro bigorna, foram dias felizes, mas em casa nem tanto. O meu pai brigava todo dia com a minha mãe por me deixar sair para ir jogar com o meu irmão, na verdade ela não sabia, eu ia escondida.

Foi então que o meu pai me colocou em um cursinho de Inglês de manhã e de tarde um cursinho para o vestibular, ele tinha um sonho que um de seus filhos entrasse na Faculdade São Francisco e cursasse direito como ele, eu então na minha ingenuidade, achando que seria aceita por ele se entrasse e cursasse direito. A minha irmã mais velha se casou com um estagiário promissor do meu pai, mas meu irmão queria fazer filosofia na Maria Antônia. Quando meu pai descobriu o que meu irmão queria surtou. Não era para eu entrar na São Francisco e sim meu irmão. Passei no vestibular e comecei o curso, sai de casa, fui morar em uma república, foi uma briga em casa, meu pai não se pronunciou, pois segundo as palavras dele – Mulher Macho não é minha filha, não criei filha pra ser isso.

Eu cheguei no apartamento na rua São João e chorei muito, por uma semana essa rejeição me machucava, ligava para minha mãe do orelhão, a minha irmã mais velha não queria mais saber nem se eu existia,  meu irmão ficou com todo o fardo, ele também saiu de casa e foi morar no Butantã em uma república.

Começou as aulas, e umas das meninas que veio morar na república era do interior, de Barueri, uma garota com o cabelo de cachos rosto de ébano, moura, o qual foi a minha segunda paixão e perdição, amei essa criatura mágica, e foi tão intenso e correspondido que fiquei com ela até o terceiro ano do curso de direito, não tinha mais contato com minha família, só falava com o meu irmão de vez em quando, ele tinha largado o curso de filosofia e entrado em administração segundo a orientação do meu pai, era os anos de chumbo, e estudante de filosofia era perseguido, o meu pai mesmo tirou ele dos porões.

Eu seguia firme, de dia estudava e de noite amava. Um amor que não senti na minha própria casa. A dor da minha vida, não foi ser enxotada de casa, ainda que não explícito, mas quando a magia de ébano foi viajar para sua cidade no interior e o ônibus bateu de frente com um caminhão, e eu fui ceifada da única alma que me amara, perdi o meu chão, meu amor, meu motivo de viver. Eu vivia para ela, morreria por ela, chegava em casa e a primeira coisa que ela me perguntava era como foi o meu dia, curava as minhas angustias, sentia a minha dor, revoltava com as minhas revoltas, ela era o meu ser e a vontade de existir. Quando fiquei sabendo que ela morreu no acidente, desliguei o telefone e corri para a janela do apartamento e gritei, gritei para a minha alma me levasse junto, seja para onde for.

Fui no velório e chorei, fui ao enterro e chorei, voltei para o apartamento vazio, chorei, pensei que se o mundo não me dava a felicidade ele não deveria existir pra mim.

Peguei os remédios que tínhamos e engoli todos com cachaça, na tentativa de encontrar a morte, essa paixão que beijou minha linda amada. Fui socorrida por uma amiga que tinha a chave do apartamento, ela entrou para ver como eu estava, estava em migalhas, chamou o socorro e fui medicada, apareceu no hospital os meus pais, eles se preocuparam comigo, ao menos uma vez, acho eu, na vida. A minha mãe me levou para ficar na casa dela, o meu pai foi ríspido, mas aceitou a decisão dela, me trataram como uma doente, uma histérica. Eu saí de casa quando ninguém estava vendo e tentei me enforcar na goiabeira do quintal, mas o meu irmão me encontrou e não deixou, o trauma foi grande e mais uma vez fui levada ao hospital, fiquei lá por três dias. Quando foi me concedido alta os meus pais não puderam ir lá me buscar no horário certo. Então sai e rumei para o apartamento, onde fomos felizes, a chave reserva ainda estava embaixo do capacho, entrei, olhei, tinha as roupas dela no guarda roupas, peguei, cheirei, ainda tinha o cheiro dela. Fui para a geladeira, ainda tinha o vinho aberto, o vinho que tomei com ela na noite antes dela viajar. Tirei a rolha, tomei no gargalho o resto, fui em direção da sacada, fiquei de costa e soltei o meu corpo ao espaço, deixei a gravidade fazer o resto, três segundos até o chão.  

Só consegui ver o meu corpo estourado, depois apaguei. Hoje me encontro aqui, não vi mais o meu amor, sempre achei que gostar do mesmo sexo era pecado, mas creio eu que pecado é ser egoísta o suficiente para não perceber que o amor da sua vida partiu e tentar de qualquer forma encontra-lo, o suicídio foi meu erro.

Por esse erro eu padeço hoje sozinha nesse vale dos suicidas. Consigo agora entender as suas lamúrias, os seus gemidos, as dores que tocam as suas almas, são dores, que sem perceber também estou soltando os meus gritos, minhas lamurias, o meu arrependimento. Foi por amor, e por amor eu deveria ter seguido em vida para lutar pelo amor de dois seres humano isso não é pecado, fugir é pecado, e eu fugi...

 

 

Francisco Maia.



quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Crônicas de um Morto.

Crônicas de um Morto.

Estou nauseado, já faz dias que sinto esse cheiro de carniça, de carne podre, tudo é escuro, os meus olhos só podem ver um tampão, sinto dores e percebo buracos que se mexem entre o meu corpo, dói muito. A carcaça que carreguei em vida, virou um banquete... Tenho vermes entre os meus dedos, tenho falto de vida nos meus pulmões, sei que esse odor vem do meu corpo já podre. Tento sair, correr, fugir, mas estou preso no canto de terra cavada, o que me restou de vida, um terno mofado e flores. O cheiro de podridão é tão grande que a minha alma chora com o ardido nos olhos, o vento que não sopra... O rosto que não tem mais o toque da brisa, o calor que me consome. A pedra que foi existir, uma breve e lamentável vida, durou o suficiente. A morte, sua longa existente me condena ao exilio, exilio de chão, chão de morro, de morte morrida pela vida levada ao extremo.
Começou em uma tarde de novembro, o trabalho tinha terminado eu estava indo para casa, louco para tomar um banho e dormir, do nada veio um velho, um andarilho e no sinal de trânsito me perguntou.  Eu estava com a janela do carro fechada. Olhei do lado e logo o vi, abri a janela, e indaguei sobre o que ele queria, ele logo me respondeu. Nada meu amigo, só te avisando que logo tu estarás entre os mortos.  Achei bem louco o senhor que era mais louco que eu, ri por um instante e continuei a minha trilha.
Cheguei em casa e foi tomar um banho, logo uma dor me contou os passos até a sala, no som estava tocando um Tim Maia, cambaleando ainda cai no sofá, achei cansaço, mas a mórbida morte me esperava.  Acordei no murmúrio, choro e piadas, contos de outrora e exaltação, de primeiro eu achei que era uma embriaguez, uma festa surpresa, onde tinha o choro de alegria e a alegria dos meus feitos, percebi então, que os meus parentes e amigos mais próximos não estavam felizes, estavam emburrados, com uma cara qual tal um trapo.  Tentei ser o mais lúcido o possível, examinei todo o contexto que me cercava.
Percebi que os meus olhos fitavam os meus próprios olhos, e tudo cheirava a flores, consegui olhar em volta de onde eu estava deitado, e logo vi que não era o meu quarto, ou muito menos a sala da minha casa, logo percebi que tinha algo de estranho, tentei me levantar, o corpo tinha um peso estrondoso, pensei: Jesus, que merda eu estou tomando! Não me lembro de tomado cerveja, ou algo alcoólico. Então o quê poderia ter me derrubado desse jeito? Veio a minha mente o senhorzinho do semáforo.
Que porra, morri! Caralho! Como assim? Eu morri e acordei na festa que eu queria esta vivo. Todos os meus amigos e familiares lá. Logo reparei na tristeza, na lamuria e choro, e senti pela a primeira vez na vida que estava morto. E comecei a observar todos a minha volta, era alma? Não sei, pois o corpo estava inerte no caixão, pior, ele era bonito, pena que a terra ia comer ele junto com a minha carne.
Quando percebi já estava sendo sepultado, a tampa do caixão caiu suavemente sobre a minha face, e eu não conseguia mais ver ninguém, só conseguia sentir os passos dos que me carregavam para a sepultura, nesse momento tomou de minha alma uma fúria, de tal tamanho que eu não conseguia sair daquele maldito caixão, d’quela porra que me colocaram.
Deitado, de terno e com aquelas flores não foi uma coisa pensada por mim, foi um improviso de alguém, só pode. Pensei: um corpo morto cheio de flores, essa merda não vai dar certo, vai feder pra caramba. Vai que eu não fique lá? Vai que? Me fudi, tive que ficar até os vermes terminarem de correr os meus ossos.
Desceu à corda, o povo começou a jogar areia no caixão, escutei o barulho, tentei gritar, mas foi em vão. Credo nego, bah. Defecaram pra mim piá. Fazer o que, morri e ninguém sabe que tenho consciência no corpo inchado. Isso não foi o pior, o pior foi os dias que passei trancado no caixão sem poder sair... Mas isso é só ler o começo dessa crônica....
Francisco Maia.