O Mendigo de
Copacabana.
Doeu,
doeu um pouco, doeu mais ver o meu corpo esmagado no asfalto. Foi um descuido e
o caminhão de lixo me pegou, que ironia,
até na morte estou do lado do que a sociedade sempre me chamou,
desencarnei, olhei a matéria pela última vez, um monte de carne moída no
asfalto negro, calor de 40° do Rio de Janeiro, fritou minha carne.
Vaguei por horas nas ruas que costumava ficar, olhei os
companheiros de batalha, logo sumi, saí desse mundo, não sei explicar para onde
fui. Olhei uma luz, e vi verde, água, cachoeiras, pedras e um muro alto sem
portas, não sabia onde estava e muito menos por qual motivo estava lá. Tive uma
vida, tida, por muitos como perdido, miserável, um bicho, sujeira para muitos
que passaram por perto de mim, um cara fedido, o verdadeiro fracassado na
existência social contemporânea. Mas, no fim, eu estou na muralha, fui
acolhido, levado e recebi todos os cuidados. Nunca na minha breve existência
fui tão bem acolhido, tive cama, comida, roupa limpa e o mais importante,
palavras de carinho. Entendi que tinha morrido, e que as minhas mazelas
tinham-se acabado, o mais difícil era me curar dos excessos da carne que tive
que cometer para suportar a rotina de rua, o frio, o calor, a fome e a dor do olhar
de quem passava e me humilhava com palavras e piedades compradas com uma moeda
de 10 centavos.
Não sou nenhum santo, mas também nenhum pecador, tive que
viver a forma que escolhi, motivos, vários, desculpa é que sempre me deixaram
lá, não me arrependo, faria tudo de novo. Hoje me encontro em um lugar que não
recebo olhar de nojo, aliás, as pessoas que me olhavam desse jeito eu não vejo
aqui, perguntei por curiosidade, mas me informaram que eles não passaram por
onde deveria, não perguntei mais, fiquei calado. Vai que eles me coloquem para
fora né?
Minha
existência mundana começa em uma família tradicional, pai, mãe e irmãos, fui o
primeiro a nascer, encarnar, vai lá. Na primeira infância, sei lá se posso usar
o que aprendi? Lembro-me da rua de casa, da minha casa, do meu quarto, das
palmeiras da praia na frente da rua, cresci, estudei nos melhores colégios da
região, região essa que não cabe mencionar. Filho de militar sempre tive que
estar postado, firme, duro. Via a fraqueza dos outros amigos como fracasso. Fui
forçado a olhar os mendigos como pecaminosos, perdidos, preguiçosos que eu como
filho de família bem sucedida tinha que trabalhar para sustentar, isso não era
justo! O governo tinha que dar um jeito, eu ouvia que pobre não deveria ter
filhos, que não deveria nascer que deveria ser extirpado pelo governo, pois
trazia sujeira e doenças.
Cresci
com esses conceitos remoendo em minha cabeça, não entendia e na verdade nunca
entendi qual seria a finalidade de uns ter mais e outros menos, qual a finalidade
de uns transgredir a lei e outros sem descumpri-la seria espancado ou preso ou
na menor da hipótese enxotado do local que estava. Bem, fui para faculdade, meu
pai como militar me queria em um curso como medicina ou direito, podia até ser
engenharia. Entrei na Universidade de São Paulo no curso de Engenharia
Mecânica, não era exatamente o que ele queria, mas aceitou, ao menos eu não
entrei nos cursos da FFLCH. Cursei um semestre de engenharia, não me adaptei, e
tranquei a matricula, mas fiquei com medo do meu pai. Fiquei morando em São
Paulo em um apartamento que ele pagava, arrumei um emprego no período que ele
achava que estava na faculdade. No final do ano ele veio na faculdade e
descobriu que eu não cursava, tinha trancado. Foi aí que ele veio no meu apartamento
junto com a minha mãe e me humilhou, falou que eu era um fraco, que eu nunca ia
ser ninguém na vida, que eu estava desperdiçando a minha juventude, minha mãe
só chorava, não falava nada, me olhava com olhos de desgosto. Ele não ia mais
pagar o meu aluguel e que eu me virasse, ele antes de sair cuspiu no chão e
olhando para frente me falou que não era mais seu filho. Foi quando entendi que
na realidade que estava sozinho nesse mundo. Chorei, me culpei, andei pela rua São João sem
saber onde parar, embriaguei chorei mais um pouco. Quando amanheceu, eu estava
dormindo em um canto, tinha mais pessoas
lá, todos cumplices de um destino igual.
Voltei para o apartamento para pegar uma muda de
roupa e o livro de Baudelaire e Florbela, larguei tudo, tudo mesmo, não voltaria
mais naquele lugar, meus pais estiveram
lá, recolheram tudo e levaram para a baixada.
Eu tinha pouco dinheiro, então comprei uma passagem para o Rio de Janeiro,
cheguei lá e não arrumei emprego,
comecei a andar na orla, comecei
a perceber que os mendigos eram mais generosos que as pessoas que passavam em
minha frente. Logo eu já estava enturmado com eles, comecei a dormir nas
marquises que eles descansavam, me aceitaram sem pedir currículo, sem querer
saber o meu sobrenome, só me aceitaram. Comecei aí a colaborar, comecei a
partir daí a perceber a miséria humana, olhar o que me era proibido, tido como
lixo. Eu fazia parte desse lixo, gostei,
fui livre, anarquista, sem poder para me prender. Comecei a ajudar os outros,
dividir, respeitar, olhar, sentir e amar.
Os
olhos preconceituosos não me afetavam, esses mesmo olhos que fui ensinado a ter
toda a minha vida, os olhos que me recusei em ter e que me baniram da minha
família. Encontrei outra família, uma que me acolheu sem querer saber o que eu
quero ser, pois para eles só existe uma forma de ser, é viver para ti e para os
seus, caridade, quanto mais pobre, mais caridosas são as pessoas, passei os
meus dias de vida em Copacabana, ajudando e sendo ajudado pelos meus camaradas
de luta. Vi sim o meu corpo despedaçado, mas também não vi o meu pai que
falecera anos antes que o meu desencarne.
Francisco
Maia.