sexta-feira, 21 de abril de 2017

Só o que te sobrou.

Só o que te sobrou.

Quando se nasce pobre, te sobra ser forte.
Quando se nasce negro, te sobrou ser forte.
Quando não te sobra o pão, engana-se a fome.
Quando não te sobra a água, engole-se a saliva.

Quando não se pode ir ao centro, te sobra a periferia.
Quando não se pode ir a praia, te sobra o morro.
Quando se vive esquecido, te sobra a sombra.
Quando se vive acuado, te sobra a raiva.

Do Norte ao Sul falta-te o sopro de vida.
Chora a criança faminta, das tuas lágrimas
 A única gota de água na terra.

Engana-se com a política;
Ainda desce o morro de chinelo para o asfalto,
Sem pisar descalço na areia.

Sorri para o clarão, no escuro,
Do estouro, sobra-te a reza,
A flor e a vela;
Cova e um número de indigente.

Francisco Maia.

O Mendigo de Copacabana.

O Mendigo de Copacabana.

            Doeu, doeu um pouco, doeu mais ver o meu corpo esmagado no asfalto. Foi um descuido e o caminhão de lixo me pegou, que ironia,  até na morte estou do lado do que a sociedade sempre me chamou, desencarnei, olhei a matéria pela última vez, um monte de carne moída no asfalto negro, calor de 40° do Rio de Janeiro, fritou minha carne.
            Vaguei por horas nas ruas que costumava ficar, olhei os companheiros de batalha, logo sumi, saí desse mundo, não sei explicar para onde fui. Olhei uma luz, e vi verde, água, cachoeiras, pedras e um muro alto sem portas, não sabia onde estava e muito menos por qual motivo estava lá. Tive uma vida, tida, por muitos como perdido, miserável, um bicho, sujeira para muitos que passaram por perto de mim, um cara fedido, o verdadeiro fracassado na existência social contemporânea. Mas, no fim, eu estou na muralha, fui acolhido, levado e recebi todos os cuidados. Nunca na minha breve existência fui tão bem acolhido, tive cama, comida, roupa limpa e o mais importante, palavras de carinho. Entendi que tinha morrido, e que as minhas mazelas tinham-se acabado, o mais difícil era me curar dos excessos da carne que tive que cometer para suportar a rotina de rua, o frio, o calor, a fome e a dor do olhar de quem passava e me humilhava com palavras e piedades compradas com uma moeda de 10 centavos.
            Não sou nenhum santo, mas também nenhum pecador, tive que viver a forma que escolhi, motivos, vários, desculpa é que sempre me deixaram lá, não me arrependo, faria tudo de novo. Hoje me encontro em um lugar que não recebo olhar de nojo, aliás, as pessoas que me olhavam desse jeito eu não vejo aqui, perguntei por curiosidade, mas me informaram que eles não passaram por onde deveria, não perguntei mais, fiquei calado. Vai que eles me coloquem para fora né?
Minha existência mundana começa em uma família tradicional, pai, mãe e irmãos, fui o primeiro a nascer, encarnar, vai lá. Na primeira infância, sei lá se posso usar o que aprendi? Lembro-me da rua de casa, da minha casa, do meu quarto, das palmeiras da praia na frente da rua, cresci, estudei nos melhores colégios da região, região essa que não cabe mencionar. Filho de militar sempre tive que estar postado, firme, duro. Via a fraqueza dos outros amigos como fracasso. Fui forçado a olhar os mendigos como pecaminosos, perdidos, preguiçosos que eu como filho de família bem sucedida tinha que trabalhar para sustentar, isso não era justo! O governo tinha que dar um jeito, eu ouvia que pobre não deveria ter filhos, que não deveria nascer que deveria ser extirpado pelo governo, pois trazia sujeira e doenças.
Cresci com esses conceitos remoendo em minha cabeça, não entendia e na verdade nunca entendi qual seria a finalidade de uns ter mais e outros menos, qual a finalidade de uns transgredir a lei e outros sem descumpri-la seria espancado ou preso ou na menor da hipótese enxotado do local que estava. Bem, fui para faculdade, meu pai como militar me queria em um curso como medicina ou direito, podia até ser engenharia. Entrei na Universidade de São Paulo no curso de Engenharia Mecânica, não era exatamente o que ele queria, mas aceitou, ao menos eu não entrei nos cursos da FFLCH. Cursei um semestre de engenharia, não me adaptei, e tranquei a matricula, mas fiquei com medo do meu pai. Fiquei morando em São Paulo em um apartamento que ele pagava, arrumei um emprego no período que ele achava que estava na faculdade. No final do ano ele veio na faculdade e descobriu que eu não cursava, tinha trancado. Foi aí que ele veio no meu apartamento junto com a minha mãe e me humilhou, falou que eu era um fraco, que eu nunca ia ser ninguém na vida, que eu estava desperdiçando a minha juventude, minha mãe só chorava, não falava nada, me olhava com olhos de desgosto. Ele não ia mais pagar o meu aluguel e que eu me virasse, ele antes de sair cuspiu no chão e olhando para frente me falou que não era mais seu filho. Foi quando entendi que na realidade que estava sozinho nesse mundo.  Chorei, me culpei, andei pela rua São João sem saber onde parar, embriaguei chorei mais um pouco. Quando amanheceu, eu estava dormindo em um canto,  tinha mais pessoas lá, todos cumplices de um destino igual.

Voltei para o apartamento para pegar uma muda de roupa e o livro de Baudelaire e Florbela, larguei tudo, tudo mesmo, não voltaria mais naquele lugar,  meus pais estiveram lá, recolheram tudo e levaram para a baixada.  Eu tinha pouco dinheiro, então comprei uma passagem para o Rio de Janeiro, cheguei lá e não arrumei emprego,  comecei a andar na orla,  comecei a perceber que os mendigos eram mais generosos que as pessoas que passavam em minha frente. Logo eu já estava enturmado com eles, comecei a dormir nas marquises que eles descansavam, me aceitaram sem pedir currículo, sem querer saber o meu sobrenome, só me aceitaram. Comecei aí a colaborar, comecei a partir daí a perceber a miséria humana, olhar o que me era proibido, tido como lixo. Eu fazia parte desse lixo,  gostei, fui livre, anarquista, sem poder para me prender. Comecei a ajudar os outros, dividir, respeitar, olhar, sentir e amar.

Os olhos preconceituosos não me afetavam, esses mesmo olhos que fui ensinado a ter toda a minha vida, os olhos que me recusei em ter e que me baniram da minha família. Encontrei outra família, uma que me acolheu sem querer saber o que eu quero ser, pois para eles só existe uma forma de ser, é viver para ti e para os seus, caridade, quanto mais pobre, mais caridosas são as pessoas, passei os meus dias de vida em Copacabana, ajudando e sendo ajudado pelos meus camaradas de luta. Vi sim o meu corpo despedaçado, mas também não vi o meu pai que falecera anos antes que o meu desencarne.

 

Francisco Maia.