domingo, 12 de agosto de 2018

O Aborto.


O Aborto.

Minha mãinha, mãe, onde estará agora? Mãe sinto falto do seu útero.
Minha mãinha, eu te esperei, andei, procurei por todos os cantos, mas nessa nova moradia não te vi, a senhora não veio me visitar, esqueceu que eu um dia fiz parte de ti. Minha mãe não sei se a senhora foi ceifada como eu fui, não sei se a senhora não passou pelo meu recorte póstumo, mas saiba mãinha que ainda vou renascer, desta vez não vou ser abortado, vou, eu, abortar.
Andei por vielas, ruas escuras, amei a noite como ela me amou e ainda ama, perdi minha mãe, deixei ela descansando no sofá assistindo a sua novela preferida, despedi com um beijo quente que sai de dentro para fora, um calor intenso, eu sabia que era o último beijo que lhe daria na minha breve vida. Fechei a porta, olhei para trás e sabia que não voltaria mais para aquele lar, casa que muitos dizem ser um barraco, desci a rua da comunidade, muitos dizem favela. Um depósito de pessoas desprovidas de recursos para morar em bairros nobres, muitos dizem ser o mérito de cada um, não sei se isso tem preceitos, mas acredito que cada um é fruto do útero que foi gerado, como aprendi na escola, o bem parido (eupátridas).
Cheguei na esquina e parei para conversar com os meus amigos, todos nós estudamos juntos, cada um numa vida diferente, meninos do morro, riamos com uma piada e no fim dela o estrondo, o barulho rompeu a noite silenciosa. Estou eu caído no chão, um projétil perfurou o meu abdome com um furinho e deixou um buraco do tamanho de uma laranja da minha costa, senti muita dor, o gosto do sangue vinha em minha boca, cuspia sangue, mais sangue vermelho jorrava da ferida aberta de minha barriga.  Hoje por onde ando estou coberto com esse vermelho, esse cheiro de sangue que não consegui me limpar, procurei lavar, esfregar, mas não posso cortar o meu corpo, ele sujo de sangue me faz lembrar do meu aborto.
Nasci em uma casa humilde, sem pai, com outros 5 irmãos, eu era o caçula não tinha quarto, a casa na verdade era um barraco tinha três cômodos, um quarto, sala e cozinha, dormia com minha mãe, não tinha café da manhã, eu tomava na escola, quando tinha. Eu nunca via minha mãe, ela trabalhava na casa de uns doutores e tinha alguns finais de semana que ela ficava para cuidar dos filhos dos seus patrões, eu recebia os cuidados da minha irmã mais velha, era ela que me levava para a escola, cozia, banhava-me e colocava para dormir. A minha irmã me tornou a minha mãe. Mãinha era mãe de outro e mucama de nossa, não de mim. Cheguei na escola um dia com tanta fome que desmaiei, não conseguia me concentrar, nem aprender, eu me achava um burro, sendo colocado de lado, nunca tinha sapatos, o meu chinelo estourado e remendado com prego, chorava, não aceitava ser tão miserável assim, tal miséria era brutal, a minha mãe não estava comigo. Por sermos pobres ela, para conseguir um pão dormido que sobrava do café do patrão ficava ausente e, eu, ficava sozinho nesse mundo de meu Deus. Os meus irmãos tentavam me ajudar da forma que podiam, um vinha com um chinelo novo, outro com comida, outro com uma camiseta, outro com a vontade de ser o meu pai. Ele ia para o asfalto com seus 13 anos vender balas de goma para me dar o que ele não teve. Eu tive uma família, não tive pai ele também me abortou, abandou e nunca me ajudou, nem ajudou os meus irmãos.
Fui abortado no dia 23 de dezembro de 2010, com os meus 17 anos, estava indo na casa da minha namorada, eu era um guri pobre de um morro do Brasil. O tiro saiu da arma de um agente do Estado. O disparo foi feito como o controle dos hilotas de uma política austera, de uma Grécia Clássica. Vago todos os meus dias nesse terreno de moribundos, esse cemitério, chão de todos, chão da humildade, da caveira, onde os vermes são os afortunados. A minha felicidade é da tristeza daqueles que não se desapegam do seu corpo e sente as picadas dos vermes, normalmente são os dos bem nascidos que não deixaram a mordomia da sua vida, a minha tristeza é ver os de classe inferiores se apegando as suas prestações. O meu tempo como guardião dessa calunga terminou, vou deixar o senhor Atotô decidir quem vai ser o novo porteiro, pois vou voltar para essa vida e terminar o que não comecei, vou abortar o maior ceifador de vidas. Vou abortar o Estado, nem que isso signifique ser guardião novamente.
Quem sabe eu possa encontrar a minha mãinha, possa andar novamente na minha favela sem sentir que ela é desigual ao asfalto tão cobiçado. Quem sabe o meu amor pela noite continue sem ter que avisar os meus amigos de infância que eles foram abortados e que a alma deles vão voar e seus corpos vão virar um banquete, possa avisa-lo que vamos resistir e realmente dar o poder para o novo povo. Ainda não vi minha mãe! Então vou ser o seu neto.

Francisco Maia.



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