Crônicas de um Morto.
O Cidadão de Bem.
Existe um vazio, existe um mundo
paralelo, eu nem usei drogas, bem o que seria droga? Hoje penso... Droga é
viver. Por Deus que não me encontrou, por Deus que me deixou, por um Deus
humano, um de carne e osso. Não tenho mais ossos, fui devorado e assisti, merda
(blasfêmia). Merda. Sou merda de vermes, fui comido, devorado, senti dor,
rezei, ninguém apareceu, apodreci, fedi. Cara! Merda. Achei a minha vida toda
que era um cidadão de bem.
Cresci em uma
família religiosa, senti a religiosidade, eu acreditei que tinha que fazer
igual o meu pai, pensei que seria amado, seria louvado, alcançaria os céus. Me
fodi todo, não tenho mais pudor em falar palavrões, estou com pessoas, almas
que praguejam toda hora, gemem, sente dor, isso é de enlouquecer. Parem. Eu
grito.
Sempre segui as regras que me beneficiavam, eu era
moralmente correto, eu dava conselhos, eu orientava casais, era uma pessoa que
trabalhava, classe média, eu não tinha a minha indústria, mas trabalhava
bastante, e o meu patrão gostava, na verdade era o meu gerente, nunca vi o dono
da fábrica. Eu sempre fui competente, e recebia um salário bom, eu era classe
média. Pena que quando percebi que empregado não é classe média era tarde de
mais, fui mandado embora e os meus rendimentos sumiram, passei necessidades,
mas não me importei, sou fiel a Deus, ele me proverá, bati as minhas panelas
e o emprego voltou a bater em minha
porta, lutei contra a corrupção do meu país. Tinha esse falso orgulho, seria eu
um cidadão de bem naquele momento.
The Doors.
Deixei o meu caixão, foi muito
duro abandonar o meu corpo podre, deixei o que eu era em vida. Parti, andei,
tudo era nebuloso, escuro, batia a fome, não tinha comida nem água, via pessoas
gritando, um horror. Eu não era daquele
lugar, por qual motivo estava ali? Vi uma porta e nela tinha uns sentinelas,
soldados, fui questionar, por qual motivo eu estava nessa penúria? Eles riram
da minha cara, e me acorrentaram. Fui levado arrastado para dentro de uma
cidade, essa cidade parecia um antro de perdição, tinha tortura por toda parte
e prostituição, tinha dor e gemidos, uns tão constante que atordoava a própria
alma.
Andei por horas, me levaram por
toda a cidade, servi de chacota para todos. Me olharam, riram, jogaram merda,
(fezes humana), aliás a cidade toda fedia a enxofre e dejetos humanos.
Deixaram-me na frente de um trono, uma cadeira dourada que tinha umas tochas
acesas do lado, fiquei ali de joelhos, o meu corpo estava todo ralado, me
puxaram pelo pescoço quando não consegui andar, me arrastaram por todas as
ruas, me senti humilhado por pessoas que eu acho inferior, bandidos,
prostitutas, malandros e favelados.
Passei a noite toda jogado na
frente daquele trono, não tinha sol, não tinha hora, o tempo não passa aqui, o
sofrimento é árduo, mas na minha cabeça já tinha passado uma noite toda, apesar
de não ver o sol rompendo as trevas da noite, eu estava em trevas e não
entendia o motivo, cara! Eu sou um cidadão de bem. Os gritos de desespero e os
gemidos aquietaram, o silêncio tomou conta do ambiente, tudo quieto, uma
quietude ensurdecedor, corroeu a minha alma esse silêncio. Rompeu a escuridão o
estrondo de uma gargalhada, o silêncio dos gemidos e gritos ainda continuou,
parecia que o medo tinha cheiro, e todos ficaram trêmulos diante da gargalhada.
O trovão veio em forma de berro. Quietos, sou o seu Senhor e vou falar agora.
- quem é esse trapo que esta na
frente do meu trono?
E uma mulher falou.
- é o cidadão de bem.
As gargalhadas entoaram, era uma
musica horrível, risadas e vaias vindos de todos os lados.
O grito veio mais uma vez. –
silêncio. A voz afirmou.
E me
foi permitido falar. Eu questionei o motivo de estar nessa miséria, sendo que
eu sou um cidadão de bem. É um teste pela minha fé? Eu quero falar com o Cristo
ou com quem manda nisso, não tem graça fazer isso! É uma brincadeira de mau
gosto, eu sempre fui correto, sempre fiz tudo conforme a moral e a ética dos
escritos. Eu sou um discípulo.
E o homem vestindo vermelho, com
aparência demoníaca me interrompeu com um risada e logo com uma palavra. –
Calado seu puto.
- quero ver os autos desse pau no
cú.
Foi quando uma figura que não
parecia homem e nem mulher levou para ele um livro grande. A figura demoníaca
me olhou e balbuciou. – Eu que mando aqui, tive várias vidas, e preferi viver
nessa cidade, eu sou absoluto, e você maninho esta aqui, não por acaso, de
cidadão de bem você não tem nada, tu deve e sou eu que vou cobrar.
A morte meu caro é apenas um
estágio, eu sei pelos autos que você traiu a sua esposa, você andou com
prostitutas, você teve casos com transexuais, você sonegou imposto, você
dirigiu com o celular no ouvido, você pegou dinheiro da carteira de outra
pessoa, você indagava sobre a meritocracia falando que pobre deveria morrer,
você furava fila e ademais falava para sua esposa estufar a barriga para passar
na fila de gestante, você pregava a palavra e não cumpria dentro da sua própria
casa, você subornava policiais para não ser multado, você cobrava o dízimo e
não repassava um centavo para os necessitados, você era vaidoso, comprava terno
de grife e carro do ano para se sentir melhor que os outros da sua comunidade,
você traia todos por dinheiro, pregava uma palavra que tu não cumpria. Era um
cidadão que de bem não tem nada. Você é nosso agora. O divorcio não era algo
que tu pregava, mas agora eu te dou, na verdade eu dou para a sua esposa, ela
tá livre de você, ela vai para outro lugar, não vai mais apanhar, ser traída e
não vai pegar doenças de ti, ela vai ser feliz
com o fim da vida dela, aliás ela já está sendo feliz. Você me pertence,
pertence a esse mundo, a dor, que tu sentes não é nada após a minha sentença,
esse homem vestido de mulher não esta aqui por ele ser homossexual e sim por
ele odiar. Os Homossexuais que realmente são cidadãos de bem não vem prá cá. Eu
nunca vi um. Todos que estão aqui é porque andaram com um e depois apedrejaram
ele por casa da sua hipocrisia.
O cidadão de bem é aquele que
realmente é empático, sente a dor do outro como se fosse a sua própria dor, é o
ético realmente, não faz nada para o próprio benefícios amiguinho, agora tu
fala em sua defesa, aqui bandido bom não é o morto, e sim quem morreu, achando
que era bom. – Gargalhadas surgiram nesse momento.
Eu fui me defender, não tinha
advogado, nem um direito, nada. Não tinha direito a um defensor, não tinha
direito a vida, tudo era censurado, nem habeas corpus, meu, eu estava em um
tribunal de exceção, e os direitos humanos? Era um absolutismo total, um
pesadelo de repressão, eu, um cidadão sem os meus direitos. Não é certo.
Em minha defesa pedi perdão a
cada um dos pecados que ele afirmava, e todos aceitaram, o perdão é divino e se
a minha esposa aceitou eu estou redimido, se o fiel acatou o que fiz com o
dinheiro do seu dízimo era por motivo maior, se eu fui um trabalhador que usou
sua panela errado foi por motivos sociais. Riram mais uma vez, eu não tinha
ninguém para me defender. Fui humilhado mais uma vez. E o cara que estava
sentado no trono chamou alguém, fiquei na espreita, esperei que me defendesse.
- Moça do cabelo, ele gritou.
A mulher entrou, logo veio
discursando, entrou com uma história triste, que ela traía o marido por status
sociais, que fazia caridade pra aparentar uma pessoa boa, que dormia sem
remorso, mas que fazia tudo para o bem comum, que ela fazia tudo o que fez para
a sociedade que vivia, ela não se achava culpada e que tinha que falar com
Cristo. Logo percebi que todos que se dizia cidadão de bem estavam sendo
julgado ali e que realmente não éramos tão do bem assim. A sentença dela foi
logo posta, e ela retirada. Não sei o interesse por mim, mas fiquei ali. Ele me
olhou, fitou bem nos meus olhos. – Você não se arrepende do que fez, você é
interessante, é você que diz que a morte com desespero é a melhor punição, por
isso o meu julgamento vai ser severo, aquele que prega a severidade tem que ser
tratado igual.
Levem ele daqui, coloquem ele na
roda da lembrança, a punição dele é ver a sua vida todos os dias, apodrecer
sentindo que a morte não era a libertação, mas sim a forma correta dele
perceber que, ser um ser de bem é sentir a dor do outro, ele vai sentir dor
todos os dias, não vão ser os vermes que vão dar essa dor, mas a consciência
dele que vai lhe proporcionar a dor de não ter feito, de ter julgado, de ser
racista, de ser homofóbico,
de ser machista, de ser um ser podre, vazio. Adore essa gente aqui, eles são o que você sempre gostou! Ele vai
passar muito tempo conosco, ele não se arrependeu de nada, é uma alma minha.
Adoro! Tudo é uma aprendizagem, nada é por acaso.
Francisco Maia.
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